quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

peito emperrado.

Enxugo com a mão direita o suor que escorre do rosto. Um calor terrível. Abro a porta do banheiro com uma cotovelada enfurecida, escovo os dentes e volto a deitar. As paredes e os móveis estão quentes, mas meu coração permanece frio. Eu avisei que essa seria a última vez que alguém entraria por aquela porta. Não minto quando olho pra vocês e digo que sinto muitíssimo, muitíssimo mesmo, repito baixinho. Vocês estão morrendo aos poucos, e eu nada posso fazer se não assisti-las partirem pouco a pouco, grão a grão. Tudo o que vocês queriam era a cortina aberta e um pouco de água. Não sei quando vou me levantar de vez dessa cama para abrir as janelas, ligar o ventilador, lavar a louça suja acumulada de três semanas, poeira por todos os cantos, choro por todos os lados. Eu não quero saber das notícias de fora, eu só quero que alguém me diga que isso está perto do fim. Se alguém estivesse por aqui agora, olharia estarrecido e permaneceria com os olhos pregados no chão. Ninguém tem nada a dizer. Ninguém pode prometer mais nada. Não há espaço nesse apartamento para mais ninguém. A idéia de trazê-las pra cá não foi minha. Eu o fiz prometer que seria ele quem cuidaria de vocês, não eu. Era um passo importante, e eu fui bem claro quando disse que não haveria volta, e que se ele quisesse, poderia largar vocês lá mesmo e desistir dessa estupidez. “Não vou voltar atrás”, lembro como se fosse hoje. Era uma voz tão cheia de verdade e certeza, que eu cheguei a pensar que morreríamos um ao lado do outro de mãos dadas. Bobagem, romantismo barato. Talvez alguém tenha morrido, mas não da forma como era prevista. Não dou atenção à outra voz que não seja a que ecoa na minha cabeça. O telefone permanece tocando, tocando, até cair na caixa postal, mas ninguém tem um recado otimista pra me dar. Contas vencidas, aluguel atrasado. Se vocês querem mesmo saber, estamos na mesma situação. Hoje acordei sem vontade de tomar café. E mesmo que tivesse vontade, não teria café em lugar nenhum desse apartamento. Era ele quem coava todas as manhãs, não eu. Droga, o que eu poderia ter feito? Ameaçado me jogar da janela? Bloqueado a saída com o meu próprio corpo? Ter apontado uma faca afiada contra o meu peito? Ou contra o dele? Não. Foi sempre uma escolha. Escolher estar presente em todos os encontros, escolher ir à feirinha naquele sábado para comprar vocês, morar aqui comigo. Nada foi forçado, pelo menos, não da minha parte.  E eu só posso falar do meu lado, já que ele saiu sem dizer nada mais que um simples: vou indo porque mudei de opinião. Em relação a que? Em relação a quem? Então, esse tempo todinho, tudo isso, era só uma opinião? Formada a partir de que? Das minhas bochechas, do meu cabelo preto, dos calos das minhas mãos? É sempre assim, acontece do nada, quando você menos espera. É como estar em meio a um mar de pessoas e, de repente, uma explosão, alguém se suicida e leva várias outras à força, sem pedir permissão. E eu me sinto assim, como se estivesse pisando nos meus próprios dentes. Mais culpa minha do que dele. Mais erros dele do que meus. Reviro as estantes, por detrás do fogão, entre os panos de prato, na penteadeira, embaixo do sofá, nas gavetas, no forro, nas prateleiras, nas cartas amareladas. Nenhuma gota d’água que seja. O peito emperrado: ninguém consegue entrar, e eu não consigo mais sair. Quem diria que essas plantas durariam mais que você?

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Tão distante.

Eu estava lá. Acordando. Tomei café da manhã. Oito horas de trabalho, três horas de aula e uma de academia me aguardavam. No fim do dia, dormia. E foi assim durante alguns dias. Até que você cruzou o meu caminho. Não deu pra não notar o seu sorriso, seus olhos, o contorno da sua boca, a sua voz. No dia seguinte, alguma coisa estava diferente. A rotina era a mesma, mas parecia que eu tinha algo mais a fazer. É, agora, eu pensava em você. Modelava as cenas na minha cabeça. A gente se encontrando depois de meses trocando mensagens, conversas e sorrisos. Confidências, rotinas e aborrecimentos. Promessas, muitas promessas. E eu quero tanto te ver. Eu quero tanto poder de te dizer pessoalmente o que só é possível ser feito por uma mensagem, ou por um texto como esse que escrevo agora. Eu sei, parece algo meio superficial. Me sinto ruim por estar - de certa forma - com as mãos atadas. Fico na torcida pra você acreditar em tudo que eu digo, mesmo que eu não possa fazer isso olhando nos seus olhos. Mesmo que depois de dizer que gosto de você, eu não posso te beijar em seguida. Você teria certeza absoluta do que eu sinto, se eu pudesse falar tudo que eu quero segurando sua mão. Você comprovaria o meu vício por filmes, livros e seriados. Me assistiria devorar uma tigela enorme de açaí. Me veria acordar de mau humor, falaria para eu deixar de ser enjoado e ir pra cozinha tomar café. Você iria ver meu mau humor se dissipar a cada torrada engolida com um gole de café. "Era fome", eu digo, enquanto passo a minha mão nos seus cabelos. Pergunto se você dormiu bem, e você balança a cabeça com a boca cheia. "Hunrum", você responde. Nossa, eu quero tanto poder te abraçar bem forte. Assistir um filme contigo. Passar um dia inteiro com você sem fazer absolutamente nada. Deitarmos na cama, fecharmos a cortina para que o sol não atrapalhe, e matar a saudade. Eu quero poder estar ao seu lado quando receber uma notícia ruim. Te oferecer um conselho, um carinho, um colo, um abraço, um beijo, meu silêncio, uma bebida quente. "Eu nunca vou sair de perto de ti", eu digo. E eu não iria sair mesmo. Seria teu porto seguro, a primeira opção da agenda do seu celular, seu número de emergência, a única pessoa que saberia como lidar com você em casos onde ninguém conseguiria te ajudar sem atrapalhar mais ainda. Cresceríamos juntos, apoiando um ao outro, eu te daria força para arriscar aquele emprego que você tanto gostaria que fosse seu, e você faria o mesmo por mim. E então, nós nos daríamos conta de que já passou um ano. "Passou tão rápido", você diz. Fotos, histórias, almoços, jantares, dialogos interminaveis, silêncios necessários, brigas sem a preocupação de que pudêssemos magoar um ao outro. Jamais diria algo que pudesse te ferir. A intenção é justamente fazer o contrário: te proteger. Colocar você nas costas quando não puder andar. Te surpreender quando você menos esperar. "Hoje é algum dia importante?", você me pergunta. "Não, seu bobo. Só queria que você soubesse que eu te amo." E daí, você fica desconcertado. Toda vez que eu penso em você, deixo escapar um sorrisinho de felicidade. Será? Será que depois de tantos erros, eu finalmente darei um passo certo? É, as histórias que vivi não foram um retrocesso, foram um avanço. Cada queda, amores não correspondidos, e era esse o prêmio caso eu não desistisse: você. Se eu soubesse, mas a gente nunca sabe. E mesmo que soubesse que todo esse caminho complicado me levaria até você, eu passaria por ele de novo, quantas vezes fossem necessárias. É complicado, eu sei. A distância é como um soco na boca do estômago. É tão mais fácil quando não precisamos pegar um avião, basta ir até a esquina, pegar um táxi. Ali, ao alcance das mãos, sem precisar desembolsar uma valor extra que, às vezes, nem possuímos. Não posso te pedir que me espere, ou que não toque sua vida pra frente. A ideia de ficar só, é uma opção minha, e não tem exatamente a ver com você. Já era o que eu queria, antes mesmo de você cruzar meu caminho. Mesmo assim, mesmo com toda essa incerteza, nada do que eu digo é da boca pra fora. Nada do que eu digo é conversa fiada. A distância não agrava o que eu sinto, não me dá a oportunidade de dizer qualquer coisa irresponsável, ou sem ser medida. Eu espero, de verdade, que a rua cuja qual eu me encontro agora, possa um dia cruzar com a tua. A verdade é que eu gosto mesmo de você e ponto final.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Valores de merda.

Eu observo algumas pessoas e tento imaginar de onde vem aquela felicidade. Rapaz, o mundo está uma merda. Você está na merda. A saúde do Brasil está na merda. Daí eu resolvo sair numa dessas noites de sábado, e a festa acaba às três da manhã, quando não, a bebida esquenta lá pela meia noite. Não há gente interessante, música boa, nem botecos abertos até o amanhecer do dia. Só aquela gente pulando de braços abertos, querendo foder e amar, tudo numa noite só, buscando saciar os prazeres da carne e um amor pra vida toda. Meninas de saia longa sem calcinha, prontas pro que der e vier, e as ditas “vulgares” viciadas em poesia. Caras mostrando o que não são, dirigindo um dinheiro que eles não tem, sorrindo uma alegria que sequer existe. Um cara cutuca meu braço e me chama até o canto. “Ali nós podemos conversar melhor”, ele diz. Quer sair comigo, mas não quer que eu diga pra ninguém. “Nem meu melhor amigo?”, pergunto. Ninguém. Ele é irredutível. Depois mostra a aliança gritando no dedo. Pensei em perguntar se a mulher dele sabia, mas depois desisti. Claro que não sabia. Elas nunca sabem. Geralmente estão em uma reunião, vão chegar atrasados, “não me espere acordada querida, tenho um relatório para fazer e não posso deixar para amanhã de manhã”. Depois ele chega de madrugada, dá um beijo no seu rosto, e ela é incapaz de desconfiar de qualquer coisa. Quando não, aproveitam enquanto a mulher está trabalhando, e levam os amantes para a mesma cama onde ela se joga quando chega do expediente e abre as pernas pra ele. Será? Talvez não. Talvez o casamento seja frio, sei lá. Cada caso é um caso. Não há vergonha ou ressentimento por parte deles. É normal. Trair o outro, e mais, trair a si mesmo é completamente natural. E não é? O ser humano passa por cima dos próprios valores quando quer alguém ou alguma coisa. Como eu disse lá em cima: não há gente interessante. Não há gente sincera. A verdade é mutável, não se sustenta mais nas próprias pernas por mais de um minuto. Tudo é dito da boca pra fora. As pessoas fedem. Resolveram se tornar o pós-carnaval. As ruas sujas, mijadas, cheias de lixo espalhados pelo chão. Namorar é complexo demais, não é compreensível. O ser humano ficou mais inteligente e, também, mais estúpido. Ficar parece ser um caminho mais fácil. Atende as necessidades que o corpo exige, mas sem se meter em uma confusão. Sim, amar virou sinônimo de confusão, dor de cabeça. Cálculos sem resultado algum, um verdadeiro quebra-cabeça com peças faltando. Não somos mais o que éramos há alguns anos atrás, e nem defendemos o que defendiam as nossas bisavós. A borda que envolve as pessoas é feita de material reciclável para não agredir a natureza. E o recheio? Que recheio?

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Acerto de contas.

- Você pode me dizer o que veio fazer aqui a uma hora dessas, Ana?
- Não me importo com as horas. Eu não poderia deixar isso pra depois.
- Deixar o quê? Do que você está falando?
- Isso.
Ana tira do bolso um anel e o joga no chão. A pequena pedrinha de diamante se espatifa em vários pedacinhos miúdos. 
- Por que a cara de surpresa, Caio? Não sabia que eu ainda tinha o anel que você me deu quando me pediu em namoro? Ainda tinha. E ainda lembro. Lembro de tudo o que você me disse. Eu lembro que naquele dia nós jantamos em um restaurante bacana. Eu pedi uma sobremesa de chocolate, e você uma de baunilha. Você segurou a minha mão durante o jantar inteiro, e falou todas essas merdas que alguém diz quando acha que está gostando de alguém. Claro, na época você disse que tinha certeza do que estava falando. Hoje nós sabemos que não, que não passava de ladainha. Dava pra ver sinceridade nos seus olhos. Como que você consegue fazer isso? Como que você consegue não se entregar nas expressões? Você fingiu tão bem. E eu, estúpida, mesmo depois de ter levados inúmeros chutes no traseiro, acreditei em cada palavra que saiu da sua boca.
- Ana, isso é desnecessário, nós tínhamos terminado numa boa.
- Sim, mas foi escolha minha. Eu que disse que não queria brigar. Eu que disse que não queria que nós nos afastássemos. E você acatou. Disse que queria a mesma coisa. Que mesmo após o término, iria continuar me ligando. Prometeu que manteríamos contato. Filho da puta! Você nunca mais me ligou, Caio. 
- Nós nos vimos um dia desses, não te lembras?
- Sim, claro. Cinco minutos depois você saiu correndo dizendo que tinha um compromisso. Não parecia sentir a minha falta tanto quanto eu sentia a sua. Mas uma coisa que você disse, de todas aquelas porcarias, era verdade.
- O quê?
- Um dos dois sempre ama mais.
- Ana...
- Você é um idiota. Esquece o que eu disse da última vez. Eu não quero terminar numa boa. Eu não quero que a gente fique bem. Eu quero que você finja que nunca me conheceu. Se, por acaso, nos encontrarmos por aí, você faça o favor de não olhar pra mim, e muito menos falar comigo. Eu apagaria todos os momentos bons que tivemos... se eu pudesse. Eles nunca vão ser superiores aos ruins que você me fez passar logo depois. 
- Tudo bem, Ana.
- Babaca!

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

O cara da filmoteca.

Acordei com uma terrível dor de cabeça. Não sei se era resultado de uma noite mal dormida ou de algum sonho do qual eu não conseguia me lembrar. Poderia muito bem ter batido a cabeça em uma pedra, e depois acordado com o som do despertador. Ainda estava passando por aquela fase difícil pós fim de relacionamento, e eu me arrastava pela casa me sentindo um merda. Pensando no que havia feito de errado, se teria volta, como que eu iria viver dali pra frente. Pensei em parar de comer, em morrer, e depois, tomava um banho demorado e afugentava todos aqueles pensamentos imundos da minha cabeça. Eu sei porra, é exagero. Mas quando eu sofro por alguma coisa, eu sempre enfio a faca um pouco mais afundo, talvez por gostar - inconsciente - de sentir dor. Ou talvez seja só exagero mesmo, sei lá. Só sei que o tempo não cura nada, e mesmo que eu me entupisse de remédios, o meu corpo não iria parar de doer. Eu só comecei a reagir quando resolvi deixar pra lá. Como um objeto que a gente consegue esconder muito bem, e quando vai procurar não encontra mais. Foi isso que eu tentei fazer, sabe? E deu certo, eu acho. Foi pensando em me distrair, que resolvi ir na filmoteca assistir um filme gratuito. Nacional. Paraísos Artificiais. E, bem... seria uma sessão comum, se não surgisse uma pessoa inconveniente e tornasse aquela sessão tranquila em um show de horror. Eu estava sentado na terceira fileira, quando alguém passou em pé na minha frente, e sentou na segunda fileira, uma cadeira para o meu lado direito. Mesmo concentrado no filme, dava de notar que o babaca em questão se virava constantemente para dar uma checada em mim. Comecei a me sentir incomodado, como se estivesse com um ponto vermelho pintado na minha testa: um movimento em falso e fim de papo. Dos encontros casuais que já imaginei em uma sessão de cinema, aquela passava bem longe da que eu tinha idealizado como perfeita. Ele não era bonito, o que não é uma surpresa. A casca era tão desagradável quanto o interior aparentava ser. Ele era um pedaço de merda. Tive vontade de desviar meu olhar do filme, encará-lo, e dizer: se você não virar essa sua cara imunda para frente, eu te encho de porrada aqui mesmo. Se um viado apanha de outro não seria homofobia, seria? Foda-se! Não o fiz. Não retirei meus olhos do filme. Não conseguia sequer me mexer. Alguns minutos depois, ele saiu. Voltou. Saiu de novo. E entre esse sai e volta, eu só conseguia atingir o ápice da agonia e do relaxamento, um depois do outro. Terrível. Na terceira vez, ele fez pior: sentou do meu lado. Agora eu sentia nojo. Nojo de mim, por ter a mesma orientação sexual que aquele demente. Eu nunca conseguiria abordar alguém daquela forma. Ele resolveu piorar ainda mais as coisas, e abriu a maldita boca.

- Qual seu nome? - ele disse, com uma voz afetada.
- João. - respondi, mas não retirei meus olhos do filme.
- Qual a sua idade?
- 22.
- Onde você mora?
- Bosque. - Menti.

Parecia um questionário, e eu respondia tudo. Eu sei, parece uma cena comum entre duas pessoas conversando durante um filme. Não sei explicar da onde surgiu o medo. Não sei explicar o motivo de ter ficado ali tanto tempo, imóvel. Eu queria sair, e ao mesmo tempo eu queria esmurrar a cara dele. Nunca mais faça isso, enquanto chutava o corpo dele caído no chão da sala. Sim, eu estava com raiva. Tinha acabado de terminar um relacionamento, precisava chorar, precisava de um abraço, precisava tomar um café bem quente enquanto alguém me contava alguma história boba. Justo naquele dia, justo no dia de espairecer a cabeça. Me preparava para sair, quando...

- Você curte?
- Tenho namorado. - Não tinha mais.
- Eu não ligo.
Mais raiva.
- Mas eu sim.
- Ele está aqui na biblioteca?
- Não. Mas isso não importa.

[...]

- Você tem cara de quem tem o pau grande. - disse ele, e colocou a mão na minha perna.
- É só a cara mesmo. Tenho pau pequeno. - respondi, e dei um tapa na mão dele.
- Deixa eu pegar.
- Não. Posso ver o filme?

[...]

- Aposto que você está de pau duro.
A pretensão do viado era das grandes, não?
- Não, não está. - E de fato, não estava.

Poderia ter me poupado dessa conversa, desse lixo, mas eu só saí depois desse último diálogo. Correndo pela biblioteca como se tivesse prestes a ser assassinado. Essa noite foi só um jeito gentil da vida me lembrar, que não haveria descarga suficiente para tanta merda que há no mundo.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

O equilibrista e a corda que não sabia de porra nenhuma.

Não, eu não havia cercado ele no beco e dado três tiros na cabeça. Eu não teria coragem de enfiar sua cabeça na banheira e contar até cem, ou jogá-lo na rua quando um carro estivesse vindo em alta velocidade. Não sou dotado de tal frieza. Ainda assim, fui sensato o suficiente para mata-lo. Dentro de mim. Não sei dizer se foi o orgulho, o cansaço ou o amor próprio. O nome do assassino ainda é uma incógnita. De que importa tal informação? Nada. O que vale é o sentimento de liberdade. Sinto como se tivesse me soltado de uma pedra em alto mar, pedra que não parava de descer, descer, descer, tentando me levar de encontro ao céu. Olha que ironia, não? Meus olhos já não piscavam, e minha boca permanecia entreaberta. Do nada, sem que eu esperasse, fui puxado pelos cabelos, ou pelos braços, não me lembro bem. Senti como se meu estômago estivesse embrulhado, como se nenhum alimento conseguisse ficar tempo suficiente para me dar a energia que eu precisava para ficar de pé. Corria até o banheiro o mais rápido que podia e depois escovava os dentes duzentas vezes. Para tirar o gosto ruim da boca, o teu. Que de início não era ruim, mas depois foi ficando azedo. Peço desculpa. A culpa nunca é só da corda que bamboleia desesperada, mas também daquele que se equilibra nela. Eu achei que era eu, aquele que conseguiria ficar mais tempo. Achei que meus pés eram perfeitos para pisar ali. Não eram. Já era difícil no começo, e alguma coisa me dizia: cara, você vai cair. Fiz-me de surdo. Vou porra nenhuma, respondi. Continuei dando passos difíceis, até que percebi que o outro lado não chegava nunca. Mais uma vez, aquela coisa me dizia: não há nada lá pra ti. Cara, sai dessa. Nunca vou saber exatamente quem me dizia o quê, mas não é que estava certo? Não havia nada. Nadinha. Depois disso, comecei a perceber algo que ainda não havia notado: a corda. A corda bamboleava mesmo quando eu parecia em perfeita sincronia. E ricocheteava mesmo sem eu tomar atitude alguma. Uma coisa estava clara, a corda não me queria ali em cima. Não sabia se girava, se balançava ou se ficava estática. Eu não podia continuar sozinho. Estávamos em dois e eu era o único que me dava por inteiro a ponto de sangrar e achar que aquilo fazia parte do processo de equilíbrio. Falava-se muito em destino, em “isso não aconteceu por acaso”, “tinha que ser assim”. Não tinha. Eu que fui teimoso achando que poderia mudar a situação com a qual eu tinha me deparado. Não podia. Quando, finalmente, me dei conta de tudo isso, eu já estava em queda livre indo de encontro com a rede. Antes de sair, ainda gritei: ESPERO QUE NÃO SINTA FALTA DOS MEUS PÉS. Mas ninguém ouviu. E então, alguns dias depois, passei a não correr mais em disparada até o banheiro. Já não existia gosto algum na boca a ser alterado. Eu estava novo. Novinho em folha.